Meias Verdades

Quando a guerra fiscal
está à sombra de tudo

DANIEL LIMA - 01/04/2003

  •  O Estado de São Paulo de 26 de agosto de 2001 publicou matéria de página inteira sob o título “Grande ABC começa a virar pólo high-tech”. Alguns trechos selecionados:

A Região do Grande ABC, tradicional reduto da indústria automobilística, começa a atrair investimentos de empresas de alta tecnologia. Os novos negócios estão vindo na trilha da evolução do processo produtivo das montadoras de veículos, da ampla infra-estrutura viária e de telecomunicações, da mão-de-obra especializada e da localização estratégica, uma vez que os municípios da região estão a meio caminho do principal mercado consumidor do País e do Porto de Santos.


No primeiro semestre deste ano, o segmento de alta tecnologia passou a figurar na lista de novos negócios anunciados para a região do Grande ABC. De janeiro a junho, duas gigantes do setor tecnológico, a IBM e a EDS, anunciaram investimentos que somam cerca de US$ 50 milhões em centros de gerenciamento de serviços. “Já estivemos conversando com três empresas da área de tecnologia da informação interessadas em trabalhar aqui”, conta o prefeito de São Bernardo do Campo, Maurício Soares. A mudança ainda que discreta do perfil da região, que responde por 13,8% da atividade industrial do Estado de São Paulo e é o terceiro maior mercado consumidor do País, reflete a evolução do processo produtivo das montadoras e dos segmentos correlatos.


Pesquisa realizada pela Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC com 40 mil empresas da indústria, comércio, serviços e construção civil do Estado de São Paulo revelou que as fábricas do ABC comparadas às de outras regiões do Estado foram as que mais inovaram na forma de produzir. O destaque ficou para os segmentos mais tradicionais: a indústria automobilística, química, máquinas e equipamentos, plásticos e borracha.


Na análise do coordenador técnico de pesquisas da Agência, João Batista Pamplona, a modernização da indústria tradicional fez com que empresas de alta tecnologia fincassem bandeira na região. Ele aponta outra dado para reafirmar a tese de que o ABC está virando um pólo high-tech: cerca de 4.150 trabalhadores atuavam em atividade de informática na região no ano passado. “Quatro anos antes, em 1996, o setor de serviços de informática era diminuto no Grande ABC e não chegava a somar cerca de mil pessoas”, conclui Pamplona.


O ponto nuclear dos investimentos seletivos e rarefeitos no setor de serviços supostamente de tecnologia de ponta em São Bernardo não foi mencionado uma única vez no texto: a guerra fiscal. Exatamente por isso a jornalista não informou que uma das duas empresas citadas, a EDS, trocou a vizinha São Caetano por São Bernardo.


Também é incorreta a afirmação de que o Grande ABC conta com ampla infra-estrutura viária. A logística, inerentemente a reboque do sistema viário, é o principal gargalo de competitividade do Grande ABC. Recentemente, a Gráfica Bandeirantes trocou São Bernardo por Guarulhos porque estudo especial da Simosen & Associados detectou que o desperdício de tempo e de espaço, sinônimos de logística, tornava excludente não só São Bernardo mas o conjunto de municípios do Grande ABC. Telecomunicações, mão-de-obra especializada e localização estratégica são vetores que pesam em novos investimentos, mas nem por isso o Grande ABC é mais competitivo do que outras regiões paulistas. Tanto não é que entre 1995 e 2001, enquanto perdia 34% do Valor Adicionado (produção de riqueza na indústria de transformação), a Região Metropolitana de Campinas ganhava 24% e o Vale do Paraíba agregava 32%.


Não se tem notícia, também, das empresas às quais se referiu o prefeito Maurício Soares. Já os 13,8% de participação na atividade industrial do Estado não passam de equívoco. No ano de 2000, conforme se entende que seja o período do ranking de Valor Adicionado, o Grande ABC participava com R$ 21,8 bilhões, ou 10,9% do Estado, que totalizou R$ 237,9 bilhões. Como se observa, em vez do que a matéria chama de evolução do processo produtivo das montadoras e dos segmentos correlatos, o que se verificou e se agravou no Grande ABC foi a destruição do tecido industrial de pequenas e médias empresas, especialmente as nacionais, engolfadas pelas barbeiragens na condução da política econômica do governo FHC.


Completando a série de equívocos, a referência à pesquisa da Agência, amplamente analisada na revista LIVRE MERCADO, não passa de um truque, de ilusão de ótica. As indústrias do Grande ABC apresentaram a mais elevada taxa de inovação no período de 1995-1996 subentendido na reportagem essencialmente porque o parque produtivo da região era o mais obsoleto do Brasil.


Como assim? Simplesmente porque a industrialização no Grande ABC se deu em período bem anterior ao que se registrou nas principais regiões do Interior paulista, ditadas pela guerra fiscal. Com isso, o Grande ABC tornou-se mais vulnerável à abertura econômica e teve de correr a toque de caixa atrás de investimentos em tecnologia. O que a matéria não diz também é que, reflexo do autarquismo econômico que, de repente, foi submetido ao banho frio e dolorido da competitividade internacional, as pequenas e médias empresas familiares praticamente foram dizimadas no Grande ABC.


Já a declaração do economista João Batista Pamplona, que enaltece o crescimento do nível de emprego do setor de informática dando-lhe ênfase desenvolvimentista, não passa de manipulação explícita: o segmento cresceu no Grande ABC em ritmo semelhante ao das principais regiões do País, na esteira da própria rede mundial de computadores até então pouco densa nas relações econômicas. Além disso, a guerra fiscal que São Caetano e São Bernardo patrocinaram no setor de serviços atraiu empregos reais e fictícios à região, tal como Barueri. Paraísos fiscais, como se sabe, dão apenas sede às empresas para efeito de recolhimento de impostos menores. Empregos e movimentação de renda ocorrem, na maioria das vezes, onde essas empresas desenvolvem operações na prática.


As fontes de informação da jornalista também omitiram o fato de que o setor de serviços de informática e de outras atividades no Grande ABC são rudimentares, sem valor agregado, de salários baixíssimos, salvo poucas exceções. High-tech mesmo é o conjunto de mecanismos preparados para vender gato por lebre.


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